Por Fernando Nogueira Costa
O livro “Histórias da Gente Brasileira – Volume 1: Colônia”, de autoria de Mary del Priore (São Paulo : LeYa, 2016) permite conhecer a origem das casta dos comerciantes na colônia de Portugal nas Américas. Será que existe dependência de trajetória, isto é, “a história importa” até hoje? Ou será que, diferentemente de outros videntes, os historiadores devem ser capazes de prever o passado com grande precisão, isto é, fazer previsões ao contrário?
Nosso problema não é apenas que não sabemos o futuro — também não sabemos muito sobre o passado. Precisamos muito de alguém como este historiador vidente que faz profecias reversas, se quisermos conhecer a história. A primeira direção da previsão é chamada de “processo forward” (para a frente). A segunda direção, o “processo backward” (para trás, inverso), é muito, muito mais complicada. O processo forward é geralmente usado na Física e na Engenharia. Já o processo backward em abordagens históricasnão experimentais e não repetíveis.
De certo modo, como diz Nassim Nicholas Taleb, no livro “A lógica do Cisne Negro: O impacto do altamente improvável”, as limitações que nos impedem de, por exemplo, desfritar um ovo, também nos impedem de aplicar engenharia reversa na História. Será que não selecionamos, entre milhares de eventos ocorridos no passado, apenas aqueles que nos possibilitam “racionalizar” uma história?
Vejamos abaixo um resumo da história que Mary del Priore tem para nos contar a respeito da origem das casta dos comerciantes na colônia de Portugal nas Américas.
“Enquanto a vida agrícola e os engenhos, motores da economia colonial, moldavam o cotidiano de muitos, as pequenas vilas e cidades faziam o mesmo. O comércio foi a razão de ser da colonização e, em maior ou menor escala, o modo de vida de grande parte dos emigrantes vindos da metrópole.
A comunidade mercantil floresceu em Recife, Rio de Janeiro, São Vicente, Bahia, Vitória e Ilhéus, cujos portos tinham grande atividade no embarque do precioso ouro branco, o açúcar. À medida que cresciam as exportações, as cabanas de barro e canas com telhados de palha, rodeadas por simples paliçada para conter os índios, foram dando lugar a edifícios de pedra e cal, onde a compra e a venda de toda sorte de produtos azeitava o comércio externo e interno da colônia.
Segundo o navegador François Pyrard de Laval, ao sopé da cidade de São Salvador, então capital do Brasil, “por mais de um quarto de légua de extensão de um lado e de outro de uma bela rua, há uma série de prédios bem construídos, ocupados por todo gênero de mercadores, oficiais e artífices. Aí estão localizados todos os depósitos e armazéns de carga e descarga de mercadorias, tanto de mercadorias do rei quanto de particulares”. A mercadoria subia para a cidade não por ladeiras em lombo de mulas, mas por pesado maquinário.
O cirurgião francês Gabriel Dellon mencionou igualmente “o número considerável de mercadores ricos de todas as nações, o que tem garantido a prosperidade do comércio local e do resto do país”. Vindos de Angola e Guiné, escravos eram multidão, segundo o mesmo.
Vinte anos mais tarde, o navegador William Dampier observava que “os comerciantes que vivem nesta praça são reputados ricos e têm muitos escravos em suas casas”. Ele cruzou com comerciantes holandeses, franceses e um inglês que carregavam mercadorias em navios portugueses. As roupas de linho, finas e grosseiras, biscoitos, trigo, vinho do Porto, azeite de oliva, manteiga e queijos, além de ferramentas de ferro e utensílios de estanho, eram os objetos de seu comércio, ali trocados por tabaco em rolo ou rapé e açúcar.
“Em dois séculos, nas cidades coloniais se cortaram infinitas ruas. Para elas, abriam suas portas tendas de pequenos comerciantes chamados, à época, de mercadores “de retalho”. As ocupações comerciais implicavam uma grande quantidade de indivíduos, como regateiros, pequenos vendedores ambulantes, lojistas, taverneiros, caixeiros, mascates de miudezas, lavradores que comerciavam seus gêneros, camboeiros de escravos, entre outros. Pelos logradouros, oferecendo serviços, circulavam as negras de tabuleiro e os escravos de ganho. Efervescência e ebulição, negociação e conflitos permitiam a livres, libertos e escravos circular, ganhar, perder e viver.
Do Nordeste ao Sudeste, nos sobrados dominavam os “homens de grosso trato”, responsáveis pelo comércio internacional de importação e exportação em larga escala e o tráfico de africanos. Também eram designados como feitores, tratantes, traficantes, caixeiros e mercadores de loja, quando não faltavam arrematantes de cargas para fazer especulação.
É o que se lê no trecho de uma “Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais”, da pena de J. J. Teixeira Coelho: “No ano de 1779, estando eu naquela cidade do Rio de Janeiro, chegaram ao porto dela dois navios carregados de negros e logo uma sociedade de negociantes comprou as carregações inteiras. Esses negociantes, como ficam sendo senhores de negros, são árbitros do preço deles.”
“A produção das Minas, grande consumidora de mão de obra africana, atuava diretamente sob a demanda de escravos e mercadorias nas cidades portuárias. Os tropeiros, camboeiros e comissários volantes realizavam a ligação do Rio de Janeiro com as minas, oferecendo às populações mineradoras além de trabalhadores, louças e porcelanas, damascos e tapeçarias da China e da Índia, brocados, vinhos, azeites e uma infinidade de outros artigos. Do mesmo modo, o ouro transportado, legalmente ou não, pelos mesmos agentes era conduzido ao porto do Rio e de lá para o exterior.
A intensidade de negócios, o número de embarcações ancoradas nos portos, o formigueiro de artesãos e pequenos comerciantes engajados na atividade mercantil impressionava. Algumas cidades funcionaram como entrepostos de mercadorias vindas de outras capitanias e mesmo da metrópole, caso do Rio de Janeiro e de Ouro Preto. Essa última recebia vinho, manufaturas, ferramentas, escravos e remédios, revendendo-os a outros núcleos. Dentro das capitanias, circulavam os produtos da terra: toucinho, aguardente, açúcar, couro, gado e algodão, além de milho e feijão.
Era preciso comprar, vender, distribuir, lucrar ou perder com tantos produtos. Milhares de vidas envolvidas com negócios deram um perfil diferenciado à sociedade colonial. Até o século XVIII, “negociante” era palavra que abarcava diferentes ocupações. Até cem anos antes, “mercador”, “homem de negócios” e “cristão-novo” eram sinônimos revestidos de impopularidade. Na hierarquia medieval cristã, o comerciante ficava abaixo das artes mecânicas. Ao comercializar o fruto de artes e ofícios, ele era considerado um parasita. Apenas no século XVIII o estigma começou a se esvair, pois a administração do marquês de Pombal, em Portugal, decretou, em 1770, que o “comércio era profissão nobre, necessária e proveitosa”.
[FNC: Em outras palavras, a casta dos aristocratas de Portugal, antes da Guerra da Independência norte-americana (1775–1783) e da Revolução francesa (1789), reconheceu a casta dos comerciantes, refletindo o contexto das revoluções burguesas em outros países. A tradição luso-ibérica, cuja herança nos influencia até hoje, já era de conciliação e não de revolução. Entregavam-se os anéis para não perderem os dedos.
Avant la lettre, Giuseppe Tomasi di Lampedusa (Palermo, 23 de dezembro 1896 — Roma, 23 de Julho 1957), no romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento, tem o trecho mais memorável do livro no discurso do sobrinho de Don Fabrizio, Tancredi, o arruinado e simpático oportunista príncipe de Falconeri, incitando seu tio cético e conservador a abandonar sua lealdade aos Bourbons do Reino das Duas Sicílias e aliar-se aos Saboia: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.]
A presença israelita no comércio da colônia de Portugal nas Américas foi incontornável. Inseridos na vida social, política e administrativa baiana, a maior parte da população da capital seria constituída por judeus ricos que adoram o comércio.
Tanto é assim que, quando um cidadão quer que um dos filhos siga a carreira eclesiástica, ele é obrigado a provar que seus antepassados eram cristãos. Já o Rio de Janeiro foi definido pelo mesmo observador como “um antro de judeus”. A eles, aos cristãos-novos, assim como aos mercadores, os cargos municipais eram vedados. Em Olinda, era proibido, por exemplo, aos “mercadores que assistissem de loja aberta”.
“Na Bahia e em Pernambuco, a passagem da taberna de vinhos ou do balcão de fazendas para o solar rural, ao pé da fábrica de açúcar, era expressão de enobrecimento. Na propriedade da terra, e não na consanguinidade, residia a qualidade do indivíduo. No início do século XIX, de passagem por Minas Gerais, o viajante Saint-Hilaire escutaria o adágio “Pai taberneiro, filho cavaleiro, neto mendicante”, sobre fortunas construídas no comércio e perdidas na lavoura.
Os “comerciantes de grosso”, poderosos e importantes para os interesses do Estado, eram grandes financistas e usurários, diferenciando-se dos comerciantes que vendiam “a retalho”, ou seja, que tinham lojas. Eles podiam exercer qualquer atividade, e essa era sua força. Especulavam, financiavam, asseguravam, armavam navios, arrematavam comendas, além de contratos públicos e privados etc. A Coroa tinha interesse em tê-los como sócios menores nas companhias monopolistas, como a que foi fundada no Grão-Pará e no Maranhão, por exemplo.
Na segunda metade do século XVIII, esses comerciantes consolidaram sua posição por meio do comércio de longa distância. Motivo, aliás, de queixumes para Martinho de Melo e Castro, ministro de Estado em Lisboa, que escreveu em 1770: “Não se pode, sem tristeza, ver como os coloniais brasileiros tomaram o comércio e a navegação com a costa da África, com a total exclusão de Portugal.”
Comércio, sobretudo, de escravos. Com fortunas superiores aos senhores de engenho ou grandes agricultores, eles almejavam, porém, a terra e o poder que essa simbolizava. A terra, e apenas ela, nobilitava, enobrecia, enquanto a atividade comercial urbana continuava malvista pela sociedade.
Arcaicos: em vez de se inserirem na mentalidade da burguesia mercantilque prosperava no norte da Europa e nos Estados Unidos da América, tais comerciantes de grosso sonhavam com títulos honoríficos e grandes plantações, como seus ancestrais alfacinhas.
No livro de Mary Del Priore, “Histórias da Gente Brasileira: Colônia”, encontramos o DNA da sociedade brasileira exploradora e discriminadora dos párias (mestiços, negros e nativos) e conciliadora entre as castas dos aristocratas governantes (oligarcas regionais proprietários de terra) e dos comerciantes grandes financistas e usurários. Tudo isso garantido pela segurança imposta pela casta dos guerreiros. E a casta dos sábios? Ainda se reduzia aos sábios-sacerdotes que louvavam a Monarquia Absolutista católica?
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