A cidade deveria ser sinônimo de coisa pública
a cidade ideal - Leonardo da Vinci
Por Fernando Lara
Faz uns 4 mil anos que a espécie humana resolveu viver em grandes grupos
organizados num determinado espaço e inventou o que chamamos de cidade. Nos
primeiros dois milênios, a cidade representou uma vantagem econômica e
organizacional. A especialização fez aumentar a produtividade, e a passagem dos
grandes clãs para uma sociedade mais complexa gerou todo tipo de avanço no
conhecimento da época. Na maioria dos casos, as cidades da Antiguidade
representavam apenas isto: uma eficiente engrenagem humana que conseguia
produzir mais e se defender (ou atacar) melhor que seus vizinhos.
É impossível não deixar de notar que a maioria das cidades da
Antiguidade eram geridas por ditaduras sangrentas e movidas por trabalho
escravo. De qualquer forma, foi na cidade, e não no campo, que surgiu a ideia
de democracia representativa. Da ágora dos gregos à res-pública de
Alberti; dos bulevares de Hausmann à estrela-guia de Brasília, a cidade sempre
serviu como representação máxima dos ideais humanos, e estes sempre tiveram um
importante componente público.
Interessante perguntar: Por que as utopias rurais obtiveram, no geral,
resultados muito inferiores que os dos movimentos revolucionários urbanos?
Existe na cidade um fator fundamental que a diferencia do mundo rural: a troca
de informações se dá de forma muito mais acelerada e entre pessoas com maior
grau de diversidade. Isso tem um impacto significativo na melhoria da qualidade
de vida e na capacidade de adaptação das sociedades urbanas quando comparadas
com sociedades rurais.
Digo isso para debater o caráter iminentemente público desta “vantagem
competitiva” das cidades. Nos dias de hoje, em que o capitalismo ocupa
quase todos os cantos do planeta, as cidades são, mais do que nunca, o último
espaço realmente público existente. Com 25% de sua superfície feita de ruas e
praças, a cidade é muito mais pública que qualquer espaço não urbano.
Acontece que esses 25% são extremamente mal distribuídos pela cidade, e
não é surpresa nenhuma perceber que as áreas onde vivem os mais pobres têm
muito menos espaços públicos (e de baixíssima qualidade) que as áreas ricas. Se
você nunca percebeu isso nos seus deslocamentos cotidianos, vale a pena dar um
passeio pelo Google Earth e ver sua cidade (inteira) por cima. Os bairros de
classe alta são arborizados, cheios de praças, parques ou praias maravilhosas,
se você mora no litoral. Foram projetados assim, e o poder público se
encarregou de construir e manter todos esses equipamentos. Nos bairros da
classe trabalhadora, mesmo naqueles cujo loteamento foi devidamente aprovado
pela prefeitura, os 35% de área pública obrigados por lei incluem as ruas (20%
em média), e para as praças, escolas e qualquer outro equipamento público
sobraram os piores terrenos: áreas alagáveis, terrenos muito inclinados ou de
qualidade ambiental comprometida pela proximidade de uma rodovia ou ferrovia,
quando não de um oleoduto ou linha de transmissão. Dos loteamentos ilegais e
favelas, tratarei no próximo texto, neles não sobrou quase nada para ser usado
como espaço público.
Não gosto, por exemplo, da expressão “falta de planejamento”, usada
indiscriminadamente no Brasil. Cada um desses espaços foi, sim, planejado por
alguém, vendido por alguém e comprado por outrem. A verdade é que o poder
público foi, durante décadas, conivente ou omisso em relação à baixíssima
qualidade desses espaços.
Enquanto a periferia das cidades brasileiras era ocupada com esta lógica
predatória de vender cada metro quadrado aproveitável, deixando para o público
quase nada ou os piores terrenos, os centros foram suprindo as carências da
população.
A explosão urbana dos anos 1950 e 1960 criou forte pressão no uso dos
espaços e equipamentos públicos. A modernização conservadora de Vargas, e
posteriormente de JK, não dava mais conta de suprir as demandas por uma melhor
distribuição de oportunidades. A resposta do governo militar foi reprimir os
movimentos sociais para calar as demandas. Mas a rua continuava
razoavelmente pública, embora controlada pela polícia para evitar que a
“malandragem” tomasse conta. As ruas, dormentes desde as últimas passeatas de
1968, voltaram a ocupar um papel de destaque na história política do País em
1984 e 1985, com o movimento Diretas Já.
Mas usando Nelson Rodrigues como indispensável referência crítica (um
direitismo necessário, eu diria), percebe-se a diferença entre os dois
públicos. Nas ruas de 1968, estavam os intelectuais, os artistas e os
universitários. Alguns milhares, talvez. Nas ruas de 1985, estavam milhões.
Universitários e intelectuais sim, mas também garçons, eletricistas,
costureiras, motoristas de ônibus, enfermeiras e balconistas.
Reforço essa diferença para mostrar como o centro das cidades
brasileiras mudou entre os anos 1960 e 1980. Antes um espaço da elite, o centro
de 20 anos depois é efetivamente popular. Essa diferença é importante para
perguntarmos: Para onde foi a elite brasileira? Ela basicamente não sai mais às
ruas, vivendo do apartamento para o carro, daí para o estacionamento do
shopping, onde estão a academia, a choperia, o cinema e até a universidade.
O modelo adotado pela classe alta brasileira é o de privatização total
dos espaços de convívio. O clube, por exemplo, essa entidade de fim de semana
tão presente na nossa vida, é uma instituição bastante brasileira. Experimente
explicar para um europeu, norte-americano ou japonês o funcionamento de um
clube. Para usar uma piscina, uma quadra de tênis e um vestiário, você compra
uma cota e ainda paga mensalidade? Mas as cidades não têm espaços para
esportes? Claro que têm, mas, na quadra pública, estão os brasileiros comuns, e
isso é o motor principal da proliferação dos clubes no Brasil. Pura e simples
exclusão.
De maneira um pouco menos explícita, os shopping centers funcionam da
mesma forma. Estratificados por faixa de renda e classe social. Em Belo
Horizonte, por exemplo (para citar uma cidade que conheço bem), existem
milhares de pessoas que saem da Pampulha e dirigem 18 quilômetros num trânsito
infernal para comprar no BH Shopping. Mas não existe shopping center na região
da Pampulha? Claro que existe, mas não com o mesmo grau de homogeneidade
(leia-se eficiência da exclusão) que o Diamond Mall ou o BH Shopping.
Esse encastelamento da elite não deveria me incomodar muito, não fosse pelo fato de que perdemos todos quando o espaço público deixa de ser o lugar do encontro e da diversidade.
Esse encastelamento da elite não deveria me incomodar muito, não fosse pelo fato de que perdemos todos quando o espaço público deixa de ser o lugar do encontro e da diversidade.
Desde as Diretas Já e alguns comícios do Lula nos anos 1990, não tivemos
mais eventos públicos com o mesmo grau de diversidade. Pensando nos
maiores eventos públicos deste início de século, fica evidente a fragmentação.
A Parada Gay arrasta milhões para um lado, e os mega-cultos evangélicos lotam
os estádios pelo outro. Dois grupos que não se encontram e não trocam
nada nem nas sessões da Comissão de Direitos Humanos do Congresso, nem em lugar
nenhum.
Cada vez mais fragmentados, conversando só com quem pensa parecido,
vamos perdendo os últimos espaços e tempos públicos que nos restam: a cidade.

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