Outubro de 2012 GAZA — O linguista americano e ativista político Noam Chomsky pediu a suspensão do cerco de Israel a Gaza, em sua primeira visita a este enclave chefiado pelo grupo radical palestino Hamas.Chomsky, que deu uma palestra na Universidade Islâmica de Gaza, pediu "o fim do assédio israelense a Gaza", declarou à AFP o presidente do conselho administrativo deste estabelecimento, Jamal al Judari."O povo palestino tem o direito de viver pacificamente e em liberdade", acrescentou Judari, citando Chomsky."Nossa viagem a Gaza foi muito difícil, mas chegamos até aqui e vi várias coisas que esperava", disse Chomsky em declarações transmitidas pela TV palestina.
por Noam Chomsky
E dificilmente é preciso mais do
que um dia em Gaza para sentir como é tentar sobreviver na maior prisão a céu
aberto do mundo, onde cerca de 1,5 milhão de pessoas, em uma faixa de terra de
aproximadamente 360 quilômetros quadrados, são submetidas a terror aleatório e
punição arbitrária, sem nenhum propósito a não ser humilhar e degradar.
Essa crueldade visa assegurar que as
esperanças palestinas por um futuro decente sejam esmagadas, e que o apoio
global esmagador por um acordo diplomático que conceda direitos humanos básicos
seja anulado. A liderança política israelense ilustrou dramaticamente esse
compromisso nos últimos dias, alertando que “enlouquecerá” caso os direitos
palestinos recebam até mesmo um reconhecimento limitado pela ONU.
Essa ameaça de “enlouquecer
(“nishtagea”) –isto é, lançar uma resposta dura– é profundamente enraizada,
remontando os governos trabalhistas dos anos 50, juntamente com o “Complexo de
Sansão” relacionado: Se formos frustrados, nós derrubaremos as paredes do
Templo à nossa volta.
Trinta anos atrás, líderes
políticos israelenses, incluindo alguns “falcões”, apresentaram ao
primeiro-ministro Menachem Begin um relatório chocante sobre como os colonos na
Cisjordânia cometiam regularmente “atos terroristas” contra os árabes dali, com
total impunidade.
Enojado, o proeminente analista
político-militar Yoram Peri escreveu que a tarefa do exército israelense, ao
que parecia, não era defender o Estado, mas sim “demolir os direitos de pessoas
inocentes só porque são araboushim (um epíteto racial rude) vivendo em
territórios que nos foram prometidos por Deus”.
Os moradores de Gaza foram vítimas de uma
punição particularmente cruel. Há 30 anos, em seu livro de memórias “The Third
Way”, Raja Shehadeh, um advogado, descreveu a tarefa impossível de tentar
proteger os direitos humanos fundamentais dentro de um sistema legal projetado
para assegurar o fracasso, e sua experiência pessoal como um “samid”, “um
inabalável”, que assistiu sua casa ser transformada em uma prisão por uma
ocupação brutal sem poder fazer nada, mas que de algum modo “suportava”.
De lá para cá, a situação se tornou muito
pior. O Acordo de Oslo, celebrado com muita pompa em 1993, determinava que Gaza
e a Cisjordânia são uma única entidade territorial. Naquela época, os Estados
Unidos e Israel já tinham iniciado seu programa para separar Gaza e a
Cisjordânia, para bloquear um acordo diplomático e punir os araboushim em ambos
os territórios.
A punição aos moradores de Gaza
se tornou ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um grande
crime: eles votaram “errado” na primeira eleição livre no mundo árabe, elegendo
o Hamas.
Exibindo seu “anseio pela democracia”, os
Estados Unidos e Israel, apoiados pela tímida União Europeia, impuseram
imediatamente um sítio brutal, juntamente com ataques militares. Os Estados
Unidos recorreram ao seu procedimento operacional padrão quando uma população
desobediente elege o governo errado: eles prepararam um golpe militar para
restaurar a ordem.
Os moradores de Gaza cometeram um
crime ainda maior um ano depois, ao impedirem a tentativa de golpe, levando a
uma forte escalada do sítio e dos ataques. Eles culminaram no final de 2008 e
início de 2009, com a Operação Chumbo Fundido, um dos usos mais covardes e
perversos de força militar na memória recente: uma população civil indefesa,
presa, foi submetida a um ataque impiedoso por um dos sistemas militares mais
avançados do mundo, que emprega armas americanas e é protegido pela diplomacia
americana.
É claro, havia pretextos – sempre há. O
habitual, apregoado quando necessário, é a “segurança”: neste caso, contra os
foguetes caseiros de Gaza.
Em 2008, uma trégua foi estabelecida entre
Israel e o Hamas. Nenhum foguete do Hamas foi disparado até que Israel rompeu a
trégua sob cobertura da eleição americana em 4 de novembro, invadindo Gaza sem
nenhum motivo e matando meia dúzia de membros do Hamas.
O governo israelense foi
aconselhado por suas mais altas autoridades de inteligência que a trégua
poderia ser renovada por meio do alívio do bloqueio criminoso e com o fim dos
ataques militares. Mas o governo de Ehud Olmert –supostamente uma “pomba”– rejeitou
essas opções, recorrendo à sua imensa vantagem na violência: a Operação Chumbo
Fundido.
Raji Sourani, natural de Gaza e
um defensor dos direitos humanos respeitado internacionalmente, analisou o
padrão de ataque da Operação Chumbo Fundido. O bombardeio era concentrado no
norte, visando civis indefesos nas áreas mais densamente povoadas, sem nenhuma
razão militar possível. A meta, sugere Sourani, talvez fosse empurrar a
população intimidada para o sul, para perto da fronteira egípcia. Mas os samidin
permaneceram no lugar.
Outra meta poderia ser empurrá-los para além
da fronteira. Desde o início da colonização sionista foi argumentado que os
árabes não tinham motivo real para estarem na Palestina: eles poderiam ser
felizes em qualquer outro lugar e deveriam partir –educadamente “transferidos”,
como sugeriram as “pombas”.
Isso certamente é motivo de
preocupação para o Egito, e talvez o motivo para o país não abrir sua fronteira
livremente para os civis, nem mesmo para os suprimentos desesperadamente
necessários.
Sourani e outras fontes com
conhecimento observaram que a disciplina dos samidin esconde um barril de
pólvora que pode explodir a qualquer momento, inesperadamente, como a primeira
Intifada em Gaza em 1987, após anos de repressão.
Uma impressão necessariamente
superficial após passar vários dias em Gaza é admiração, não apenas pela
capacidade de seus moradores de prosseguir com suas vidas, mas também com a
vibração e vitalidade dos jovens, particularmente na universidade, onde
participei de uma conferência internacional.
Mas é possível detectar sinais de
que a pressão pode estar se tornando insuportável. Relatos indicam que há uma
crescente frustração entre os jovens –um reconhecimento de que sob a ocupação
americana-israelense o futuro não lhes reserva nada.
Gaza tem a aparência de um país
de Terceiro Mundo, com bolsões de riqueza cercados por pobreza abjeta. Mas não
é subdesenvolvida. Em vez disso, ela é “desdesenvolvida”, e de modo
sistemático, tomando emprestado o termo cunhado por Sara Roy, a principal
especialista acadêmica em Gaza.
A faixa de Gaza poderia ter se
tornado uma região mediterrânea próspera, com rica agricultura e uma
florescente indústria pesqueira, praias maravilhosas e, como foi descoberto há
uma década, com boas perspectivas de amplas fontes de gás natural dentro de
suas águas territoriais. Por coincidência ou não, foi quando Israel
intensificou seu bloqueio naval. As perspectivas favoráveis foram abortadas em
1948, quando a faixa teve de absorver a enxurrada de refugiados palestinos que
fugiam em terror ou foram expulsos à força do que se tornaria Israel –em alguns
casos meses depois do cessar-fogo formal. As conquistas de Israel em 1967 e
suas consequências desferiram golpes adicionais, com os crimes terríveis prosseguindo
até hoje.
Os sinais são fáceis de ver, mesmo em uma
breve visita. Sentado em um hotel próximo do litoral, é possível ouvir o fogo
de metralhadora das canhoneiras israelenses expulsando os pescadores das águas
territoriais de Gaza e de volta para terra, os forçando a pescarem em águas
altamente poluídas por causa da recusa americana e israelense de permitir a
reconstrução dos sistemas de tratamento de esgoto e de energia que eles
destruíram.
O Acordo de Oslo continha planos para duas
usinas de dessalinização, uma necessidade nessa região árida. Uma, uma
instalação avançada, foi construída: em Israel. A segunda é em Khan Yunis, no
sul de Gaza. O engenheiro encarregado em KhanYunis explicou que a usina foi
projetada para que não possa usar água do mar, mas sim dependa de águas
subterrâneas, um processo mais barato que degrada ainda mais o aquífero
limitado, garantindo problemas severos no futuro.
A oferta de água ainda assim é
severamente limitada. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados
da Palestina (Unrwa, na sigla em inglês), que cuida dos refugiados, mas não dos
demais moradores de Gaza, divulgou recentemente um relatório alertando que os
danos ao aquífero podem em breve se tornar “irreversíveis”, e que sem uma ação
rápida, Gaza pode deixar de ser um local habitável em 2020.
Israel permite a entrada de concreto para
projetos da Unrwa, mas não para os moradores de Gaza envolvidos nos grandes
esforços de reconstrução. O equipamento pesado limitado permanece em grande
parte ocioso, já que Israel não permite materiais para reparo.
Tudo isso faz parte do programa geral que Dov
Weisglass, um conselheiro do primeiro-ministro Olmert, descreveu depois que os
palestinos não seguiram as ordens nas eleições de 2006: “A ideia”, ele disse,
“é submeter os palestinos a uma dieta, mas não deixá-los morrer de fome”.
Recentemente, após vários anos do esforço, a
organização israelense de direitos humanos Gisha teve sucesso em obter uma ordem
judicial para que o governo divulgue seus documentos detalhando os planos para
a “dieta”. Jonathan Cook, um jornalista baseado em Israel, os resumiu: “As
autoridades de saúde forneceram cálculos do número mínimo decalorias
necessárias para os 1,5 milhão de habitantes de Gaza não ficarem desnutridos.
Esses números foram então transformados em caminhões de comida que Israel
supostamente permite que entrem diariamente –uma média de apenas 67 caminhões,
muito menos da metade do mínimo necessário– em Gaza. Em comparação, eram mais
de 400 caminhões antes do início do bloqueio”.
O resultado da dieta imposta, observa o
acadêmico de Oriente Médio, Juan Cole, é que “cerca de 10% das crianças
palestinas em Gaza com menos de 5 anos tiveram seu crescimento atrofiado pela
desnutrição. (...) Além disso, a anemia é disseminada, afetando mais de dois
terços das crianças pequenas, 58,6% das crianças em idade escolar e mais de um
terço das mães grávidas”.
Sourani, o defensor de direitos humanos,
observa que “o que é preciso ter em mente é que a ocupação e o cerco absoluto é
um ataque contínuo à dignidade humana da população de Gaza, em particular, e de
todos os palestinos, em geral. É uma degradação, humilhação, isolamento e
fragmentação sistemática da população palestina”.
Essa conclusão foi confirmada por muitas
outras fontes. Na “The Lancet”, uma importante revista médica, Rajaie Batniji,
um médico visitante de Stanford, descreve Gaza como “uma espécie de laboratório
para observar a ausência de dignidade”, uma condição que tem efeitos
“devastadores” no bem-estar físico, mental e social.
“A vigilância constante do céu, a punição
coletiva por meio do bloqueio e do isolamento, a invasão de lares e das
comunicações, e as restrições a aqueles que tentam viajar, casar ou trabalhar
tornam difícil viver uma vida digna em Gaza”, escreve Batniji. Os araboushim
precisam ser ensinados a não levantarem suas cabeças.
Havia esperança de que o novo
governo de Mohammed Mursi no Egito, que é menos escravizado a Israel do que a
ditadura de Hosni Mubarak apoiada pelo Ocidente, poderia abrir a Travessia de
Rafah, o único acesso de Gaza ao exterior que não está sujeito ao controle
israelense direto. Houve uma leve abertura, mas não muito.
A jornalista Leila el Haddad escreve que a
reabertura sob Mursi “é simplesmente um retorno ao status quo de anos
anteriores: apenas os palestinos portando identidades de Gaza aprovadas pelos
israelenses podem usar a Travessia de Rafah”. Isso exclui um grande número de
palestinos, incluindo a própria família de El Haddad, onde apenas um cônjuge
tem uma carteira de identidade.
Além disso, ela continua, “a travessia não
leva à Cisjordânia, nem permite o transporte de bens, que são restringidos às
travessias controladas pelos israelenses e estão sujeitos às proibições a
materiais de construção e exportação”.
A Travessia de Rafah restrita não muda o fato
de “Gaza permanecer sob forte sítio marítimo e aéreo, e permanecer fechada para
capitais culturais, econômicos e acadêmicos palestinos do restante dos territórios
ocupados por Israel, em violação às obrigações americanas e israelenses segundo
o Acordo de Oslo”.
Os efeitos são dolorosamente
evidentes. O diretor do hospital de Khan Yunis, que também é o chefe de
cirurgia, descreve com fúria e paixão a falta até mesmo de medicamentos, o que
deixa os médicos impotentes e os pacientes em agonia.
Uma jovem relata sobre a doença de seu pai
falecido. Apesar do orgulho dele por ela ter sido a primeira mulher no campo de
refugiados a obter um diploma avançado, ela diz, “ele faleceu depois de seis
meses de luta contra um câncer, aos 60 anos”.
“A ocupação israelense lhe negou a permissão
para receber tratamento em hospitais israelenses. Eu tive que suspender meus
estudos, meu trabalho e minha vida para ficar ao lado de seu leito. Todos nós
ficamos, incluindo meu irmão, o médico, e minha irmã, a farmacêutica,
impotentes e sem esperança, assistindo seu sofrimento. Ele morreu durante o
bloqueio desumano de Gaza em meados de 2006, com muito pouco acesso ao serviço
de saúde.”
“Eu acho que a sensação de impotência e
desesperança é o pior sentimento que um ser humano pode sentir. Ele mata o
espírito e parte seu coração. Você pode lutar contra a ocupação, mas não pode
lutar contra seu sentimento de impotência. Não dá nem mesmo para dissolver esse
sentimento.”
Um visitante a Gaza não pode
deixar de se sentir enojado com a obscenidade da ocupação, somada com a culpa,
porque está dentro de nosso poder colocar um fim a esse sofrimento e permitir
que os samidin tenham as vidas de paz e dignidade que merecem.


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