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sexta-feira, 20 de julho de 2018

Genova, 2001

“Em Gênova, vimos como é possível erguer grades e portões, e transformar o tecido urbano vivo em um espaço morto que lembra aquele das cidades pestilentas e dos campos de concentração”.

Foto: Tano D’Amico

A primeira pergunta a se fazer a respeito do que ocorreu [no G8 de 2001] em Gênova* é a seguinte: Por quê os líderes dos Estados mais ricos e poderosos escolheram realizar uma reunião tão impopular não em um local isolado – um castelo ou um destas grandes residências de campo tão comuns na Europa – mas em uma cidade antiga e habitada por muita gente, onde os problemas de ordens e segurança eram tão importantes que eles exigiram a produção de técnicas e forças que necessariamente iriam importunar a tranquilidade dos moradores e ter por consequência todo tipo de riscos? Por quê também ter criado condições em que vidas humanas podiam ser sacrificadas?

Eu vejo uma única resposta possível: tratava-se, mais uma vez, de experimentar as novas formas de dominação mundial e os novos dispositivos que estão transformando radicalmente diante dos nossos olhos o que até agora chamávamos de “política” e “democracia”. Durante a guerra do Golfo e durante a recente guerra da OTAN contra a Sérvia, tratava-se de verificar até que ponto o novo poder mundial era capaz de redefinir as regras do direito internacional, transformando uma guerra externa em uma operação de polícia; hoje em dia, trata-se de verificar até que ponto é possível transformar e suspender as regras do direito interior e os princípios fundamentais da vida dentro de uma sociedade democrática. Não podemos entender o que acabou de ocorrer em Gênova se não observamos que, exatamente como no momento da guerra contra Sérvia, esta cidade da Itália foi o palco de uma guerra sem que os procedimentos previstos pela Constituição e pelo Direito Internacional fossem respeitados, que uma cidade inteira foi colocada em Estado de sítio e que os direitos fundamentais dos moradores – e dos cidadãos italianos e europeus em geral – foram gravemente limitados, sem que o Estado de emergência fosse decretado, fato que poderia ter legitimado, mas em nenhum caso justificado, tais limitações.

O cerne destas “experimentações de poder” é uma questão tão vital que estas não tinham apenas por objeto testar novas regras e dispositivos, mas antes de tudo construir um novo modelo de espaço urbano e social no qual estas regras e dispositivos iriam atuar. Era então preciso transformar o que aparece como o elemento mais difícil de ser controlado – o tecido urbano de uma cidade antiga europeia (e a cidade de Gênova, com suas vielas estreitas e seu centro histórico não foi escolhida por acaso) – em uma zona de controle absoluto, segundo um modelo que não é tanto o modelo jurídico do Estado de sítio porém, mais exatamente, àquele de uma cidade medieval atingida pela peste, dividida em zonas de segurança graduais, dentro das quais algumas, onde o controle é reduzido a uma porção ínfima, são abandonadas à epidemia, e outras cada vez mais estancas, isoladas e protegidas. Mais uma vez, a analogia entre a organização do espaço geopolítico externo e a articulação do espaço social interno funciona maravilhosamente bem. Exatamente como o mundo pôde ser dividido pelas estratégias de poder em diferentes zonas de turbulências graduais – no centro, encontramos a zona de segurança absoluta onde nenhum tipo de guerra é possível; em volta deste centro, existem as zonas-tampão nas quais desordens podem ocorrer até um certo limite; e enfim, depois destas zonas chegamos nas “terras de ninguém” onde tudo, absolutamente tudo pode ocorrer. As antigas cidades europeias assim como as metrópoles americanas são hoje em dia divididas em zonas de cores diversas e segundo escalas de controle que reproduzem em sua estrutura a nova articulação do poder mundial.

Em Gênova, vimos como é possível erguer grades e portões, e transformar o tecido urbano vivo em um espaço morto que lembra àquela das cidades pestilentas e dos campos de concentração. “Esta é a cidade, este é o mundo no qual vocês terão que viver, no qual, mesmo que vocês não tenham percebidos, vocês já vivem”. Este é o recado que o poder, em Gênova, lançou para toda humanidade. Cabe a humanidade ouvir este recado e cabe a nós também pensar nas respostas que podemos lhe dar. Precisamos reagir ao que é, talvez, depois do projeto nazista de uma nova ordem mundial, o projeto mais contrário às formas de vida e mais insano que um poder já imaginou para seus súditos.

Giorgio Agamben
Genova e la peste [Gênova e a peste]
Il Manifesto | 2001

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