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Por Matheus Pichonelli
Não: não eram cerca de 50 manifestantes. De 50 em 50, eles já deram as caras nos protestos pró-impeachment, no ato pró-Trump organizado outro dia mesmo na avenida Paulista, nas homenagens do deputado brucutu ao torturador em plenário, e até no silêncio de São Paulo, do Rio, de Brasília e de qualquer outra cidade diante da chacina e do extermínio da juventude pobre brasileira. Chegamos ao ponto de parecer normal que um filho seja morto pelo pai por discordar das ocupações nas escolas.
Ou que um repórter honesto seja agredido por trabalhar na emissora dita inimiga.
O câncer do autoritarismo brasileiro foi durante anos tratado com band-aid e o resultado é um país em ebulição, raivoso, intolerante, ansioso por qualquer projeto de salvação.
Este tumor andava escondido em nossa interpretação peculiar da ideia de anistia e no desrespeito pela memória tratada pela Comissão da Verdade que fingimos não ver. E se acomodava na negação da própria palavra, este recurso de identificação de genes, DNAs e estruturas herdadas da ditadura militar, mas também do Estado Novo, das insurgências liquidadas na bala e dos séculos de escravidão, cinismo, segregação e abandono.
Hoje (só hoje?) não há roda de conversa que não tenha um único elemento que não levante a ideia: o país só terá jeito quando o Congresso for transformado num grande estacionamento. Alimentamos o ódio ao sujeito político e, como resultado, perdemos de vista a ideia de que a saída, qualquer uma, é política.
A narrativa sobre extermínios e soluções radicais para momentos de crise, ou impasse, como preferem alguns, alimentou com a mão fanáticos como os que invadiram a Câmara dos Deputados na quarta-feira 16 para pedir intervenção militar – sem imaginar o que teria acontecido com seus corpos, no dia seguinte, se promovessem o mesmíssimo ato num estado sob intervenção. (Em tempo: a solução proposta por eles equivale a destruir um automóvel para resolver o problema da direção).
Numa época de relativismos absolutos, falta, nessas horas, uma identificação clara dos responsáveis pelo estado de loucura que entramos sem horizonte de saída – porque a saída, em si, está desobstruída pela estupidez de quem fez pouco caso das faixas, discursos e cartazes de apelos autoritários, em favor do extermínio, de quem, atolado pela desconexão do mundo, já não distingue o “perigo” comunista da bandeira do Japão.
A responsabilidade começa quando lunáticos começam a formar filas de seguidores com índex de publicações impatrióticas, como nos tempos da Guerra Fria – também conhecidos como quem pensa diferente. Estende-se quando jornais ditos sérios e de circulação nacional convida estes lunáticos a postar seus delírios em páginas nobres. Aquele colunista de revolta seletiva que fala em perigos esquerdistas/comunistas para alimentar demônios tem, e muito, parte disso. Seu nome é legião, porque rendem cliques e agora são muitos.
Mas não só. O próprio grupo político hegemônico, deste ou daquele partido, alimentou essa fantasia que só enxerga o dilúvio para além das saídas propostas por ele. Bancou protestos e espaços de opinião montados para alvejar adversários. Apostou no radicalismo e na cisão para garantir e ampliar o próprio espaço – ou delimitar a própria estratégia de sobrevivência.
A culpa é ampla, geral e irrestrita. E difusa. Mas passa, certamente, pelo deboche de quem defende redução de gastos oferecendo banquetes a quem acumula aposentadoria em regime especial e vencimentos acima do teto e tem como único corte à vista o filé servido pelo anfitrião. (São os mesmos que, para ganhar palanque, querem convencer os que não encontraram a realização dos sonhos e das ambições pessoais de que o problema do Brasil não são os privilégios e deboches, mas as políticas distributivas e os pescadores que recebem seguro na época da reprodução das espécies).
O monstro alimentado pelos grupos políticos que restringiram as saídas políticas baseadas no diálogo, na tolerância e na representatividade e apostaram na arrogância e na cisão agora se volta contra os próprios criadores.
Os anos de arrogância e ações entre amigos, que até pouco tempo posavam para fotos em Paris com guardanapos na cabeça, fizeram da velha capital, enclave do PMDB há anos, um futuro próximo daquilo que os invasores da Câmara exigem a plenos pulmões: há agora um caveirão na porta do Legislativo e não se sabe se as grades servem para restringir a circulação de quem está dentro ou de quem está fora. Quer saber como é a vida num Estado mínimo sob intervenção militar? Ande pelas ruas do Rio, estado onde dois ex-governadores foram presos em menos de 24 horas, um deles acusado de abuso de poder político, o outro, de comandar um grupo responsável por desviar R$ 224 milhões em contratos com empreiteiras.
E para não dizer que não falamos das flores, precisamos lembrar da responsabilidade também de magistrados que mal disfarçam a atuação política, seja para divulgar ilegalmente conversas privadas e engrossar o caldo político das decisões, seja para trocar farpas em público, em nome de velhos amigos, em plena Suprema Corte. O exemplo, por aqui, é uma espécie de súmula vinculante – se o topo está ocupado por boquirrotos, como esperar delicadeza de quem os assiste?
A ironia, nisso tudo, é que antes mesmo de assumir a Presidência Temer Golpista dizia que alguém precisava unificar o país – passamos meses debatendo se naquele instante ele se colocava ou não à disposição do desafio. Um ano depois, o resultado da pacificação está nas capas dos jornais: seu partido está enroscado nas mesmas investigações que vitimaram os parceiros de chapa, o principal sócio da aventura está preso, as ruas seguem tomadas por descontentes (pior: em dia útil e sem a camisa da seleção), os neoaliados já subiram no muro, a fatura veio com juros e a saída para a crise, proposta de cima para baixo e sem mexer nas estruturas de privilégios, tem tanto potencial de pacificação quanto um galão de gasolina para conter um incêndio.
Desse jeito não há propaganda em horário nobre entre amigos que dê jeito.


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