Contra o discurso conformista e arreguista de "Consciência Humana/Universal"
1. Discursos “não precisamos” são verticalizados e arrogantes. Quem disse que não precisamos? Foram as organizações do movimento negro? Certamente não, porque muito lutaram para que o 20 de novembro fosse uma data de resgate da memória de Zumbi dos Palmares e, portanto, da própria resistência à escravidão. Afinal, lembrar Princesa Isabel é uma piada em termos de resgate da luta da população negra no Brasil. Quando se utiliza “não precisamos”, é preciso ter clareza de onde falamos e quem o fala. O protagonismo da reflexão sobre a relevância desta data é das pessoas negras, dxs ativistas negrxs e das organizações que atuam no combate ao racismo.
2. A ideia de que exista algo chamado “consciência humana” é uma grande ficção, e nem diria que chega a uma utopia. Se não reconhecemos os privilégios que temos (e todos nós temos alguns, outros muitos), o lugar de onde falamos e o que sabemos ou não das lutas de outros grupos e pessoas, caímos neste conto de fadas de que existe uma “consciência humana”. E o fato de sermos humanistas seculares e atuarmos no fortalecimento tanto da LiHS quanto desta cosmovisão deveria nos deixar ainda mais claro o quanto um “humano universal” e com demandas puramente universais não existe, ainda que haja direitos básicos que entendemos serem universais. Entretanto, na hora de construir um discurso e projetos políticos de intervenção no mundo, é preciso observar a história e as formas de funcionamento do poder.
3. O que a história nos ensina é que para esvaziar uma luta, você descaracteriza seus sujeitos e demandas, despersonifica suas especificidades e dilui pautas específicas em pautas genéricas. É assim que as formas de operação do poder (essencialmente econômico, que deriva para o político e midiático) conseguem esvaziar movimentos sociais, manifestações e reivindicações. E quando se tenta fazer isso pelo discurso desta imagem, não estamos ajudando mesmo. Estamos ignorando a história ao fazer isso. Ignorando movimentos por direitos civis e sociais em várias partes do mundo, ignorando o que as diversas ondas dos movimentos feministas nos legaram e o que o próprio movimento LGBT nos ensinou. Ou seja, quando não damos nome à opressão, aos oprimidos, aos opressores, às formas específicas de opressão, e às formas específicas de combatê-la, nós enfraquecemos uma causa. E o jeito mais comum (por isso clichê) de se fazer isso é apelando para uma consciência humana, uma empatia universal, um “humano global”. Nada disso existe.
4. Por fim, as formas de atuação política que temos no mundo não funcionam com um discurso de diluição das causas e de desejo de permanência da atenção sobre todas elas (o tal “365 dias do ano”). Um exemplo prosaico é observar como uma entidade que se pretende global, as Nações Unidas, tem agendas específicas, com datas e atividades específicas. Se uma “consciência global” fosse suficiente, não seria preciso instituir não só no plano do discurso, mas no das práticas das instituições e seus sujeitos, formas de atuação que lembrem da especificidade de cada demanda, de cada causa e suas complexidades. Quem pode protestar 365 dias do ano em favor de uma causa? Quem vai à Câmara Municipal, à prefeitura ou ao Senado todos os dias, para citar um exemplo? Quem faz isso para todas as causas? Todo mundo? Não, ninguém consegue. Há muita coisa a se fazer no mundo. Por isso este discurso da “consciência humana” é política e historicamente insustentável, além de contribuir, na verdade, para a manutenção do status quo. Ninguém pode se apoderar (colonizar) das causas e pautas das pessoas que são diretamente afetadas por elas. A autonomia e o empoderamento têm de ser destas pessoas, e cabe a quem goza dos privilégios aos quais aqueles sujeitos não têm acesso, apoiá-las, aliando-se às lutas delas e compreendendo que o protagonismo é delas. Então é prudente se questionar: os movimentos contra o racismo não querem esta data? Não querem visibilizar com maior ênfase, neste período, as pautas que têm?
Pelo 20 de novembro, pela Consciência Negra.


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