Um dos coordenadores da consulta que mobilizou
sociedade esta semana sustenta: foi apenas primeiro passo – porque
não haverá novo país sem nova democracia
José Antonio Moroni, entrevistado por Antonio
Martins (outraspalavras.net)
Como se ainda fosse necessário, o divórcio entre
o velho jornalismo e as mobilizações e inquietações da sociedade
emergiu novamente esta semana. Centenas de milhares de brasileiros
votaram, em cédulas impressas ou via internet (ainda é possível
fazê-lo,
neste domingo…), num plebiscito informal sobre a necessidade de uma
Reforma Política. Capilarizada, a consulta espalhou-se por todo o
país. Foi preparada durante meses, por meio de debates, formações
de ativistas, vasta distribuição de textos didáticos, cuidadosa
preparação logística. Porém, este fato incomum (e capaz de gerar
inúmeras histórias saborosas) foi ignorado solenemente pelos
jornais e TVs – estes mesmos que tratam política como “caso de
polícia”. É como se houvesse um limite de ferro para as críticas
ao sistema institucional de poder. Elas devem ser interrompidas
sempre que houver risco de surgir uma alternativa democratizante…
Como as informações foram bloqueadas, emergiram
dúvidas. O plebiscito desta semana tem valor legal? Será enviado ao
Legislativo? Haverá, de fato, uma Constituinte sobre o sistema
político? Que fazer em seu favor?
O historiador José Antonio Moroni, um
dos coordenadores da Coalizão
pela Reforma Política Democrática e do Instituto e Estudos
Sócio-Econômicos (Inesc),
passou os últimos dias refletindo sobre estas questões. Ele vê a
consulta desta semana como um ponto de virada. Agora, a crítica ao
atual sistema político ganhou as ruas. Talvez seja possível
executar uma estratégia tecida em silêncio, durante anos, pelos que
denunciam o sequestro da democracia pelo poder econômico – e a
necessidade a necessidade de resgatá-la.
Para não ficar na fachada, a construção de um
novo sistema político precisa questionar, no Brasil, interesses
muito poderosos. Deve multiplicar as formas de democracia direta,
colocando em xeque o poder quase absoluto dos “representantes do
povo” para tomar decisões. Precisa cortar a submissão da
esmagadora maioria dos parlamentares aos donos do dinheiro. Poderia
quebrar a exclusividade dos partidos, estabelecendo o direito a
candidaturas avulsas. Não terá sucesso se não enfrentar temas como
o elitismo do Judiciário e controle das Comunicações por um
pequeno oligopólio de barões.
Tais mudanças não serão feitas pelos membros
atuais do Legislativo. Será obrigatório sacudir as instituições –
deflagrando, em algum momento, uma mobilização intensa a ponto de
obrigar a convocação de uma Assembleia Constituinte sobre o Sistema
Político. É sobre isso que centenas de milhares de brasileiros
pronunciaram-se, no plebiscito informal da semana passada. Mas quando
sua voz será ouvida? E o que fazer, até lá?
É aí que entra uma espécie de fase
intermediária da campanha. A consulta de 1º a 7 de setembro
deflagrou um processo. Nos próximos meses, ele prosseguirá por meio
da pressão social em favor de um Projeto
de Lei de Iniciativa Popular sobre o mesmo tema. Embora mais
limitado que a Constituinte, ele também é capaz de entusiasmar. Se
aprovado, provocará uma pequena revolução. Proibirá, por exemplo,
a fonte principal de toda corrupção – a transferência, pelas
empresas, de dinheiro aos partidos e políticos. Obrigará a
convocação de plebiscitos ou referendos para decisões importantes
– entre elas, a alienação (via privatizações e concessões) de
bens relevantes da União. Estabelecerá formas de democracia direta
via internet (os eleitores poderão aderir eletronicamente a novos
projetos de lei de iniciativa popular). Reorganizará o sistema
eleitoral.
É claro que se erguerão, também diante desta
primeira proposta de mudanças, enormes resistências. O sistema
político perdura porque serve aos poderosos. Mas já há, aos que
queiram debater o tema e lutar por ele, bem mais que boas intenções
genéricas… Graças a anos de esforço de gente como José Antonio
Moroni, a Coalizão por uma Reforma Política Democrática desenhou
em detalhes o Projeto
de Lei de Iniciativa Popular descrito acima. Produziu, além
disso, um resumo,
uma cartilha,
uma agenda
de ações, uma biblioteca
e um noticiário.
Oferece, até mesmo, formulários
para quem estiver disposto a colher assinaturas em favor do projeto
de iniciativa popular. São necessária 1,5 milhão. Mais de 500 mil
já foram coletadas e o plebiscito certamente deflagrará uma nova
onda de ações.
Os resultados numéricos da consulta informal
desta semana serão anunciados nos próximos dias. Mas o efeito
principal, de caráter político, está claro. Voltou à agenda
brasileira um tema indispensável para qualquer mudança social
profunda. Já há como agir em favor dele. É o que Moroni
explica em detalhes, na entrevista a seguir.
Moroni: “Chegamos ao limite. Precisamos criar novas institucionalidades processem as demandas populares. Não podemos ter medo – e sim, ousadia”
Em que pé está a articulação da sociedade
civil em torno de um a plataforma para a Reforma Política?
Hoje temos duas grandes estrategias politicas em
relação a reforma do sistema politico. Uma que a Iniciativa Popular
da reforma politica que trata de uma nova regulamentação dos
instrumentos de democracia direta e novas normas para o processo
eleitoral. Estas mudanças podemos fazer por projeto de lei, não
precisam mudanças constitucionais.
Outra estrategia é a convocação de uma
Constituinte exclusiva e soberana para o sistema politico. As
organizarmos um plebiscito popular, quisemos chamar atenção para a
importância de ir mais fundo, alterando também os dispositivos
constitucionais que tratam do sistema político.
São duas estrategias distintas, mas que se
complementam. Uma tem como objetivo uma incidência a curto prazo;
outra, mais a médio e longo prazos.
Vamos por partes, então Que pontos específicos
esta Iniciativa Popular pretende? Quem os defende? Em que estágio
está? Coleta de assinaturas?
Primeiramente, devemos esclarecer que iniciativa
popular não pode propor mudanças constitucionais. Como isso está
excluído, nosso projeto concentra-se em dois grandes eixos: ampliar
as possibilidades de democracia direta e enfrentar enormes distorções
do sistema eleitoral.
Em favor da democracia direta, queremos alterar as
leis que regulamentam o artigo 14 da Constituição, ampliando o
papel e a força dos plebiscitos, referendo e projetos de iniciativa
popular. Algumas decisões centrais para o futuro do país – por
exemplo, alienação dos recursos minerais ou das fontes de energia
hidráulica da União – só poderiam ser adotadas por meio de
plebiscitos ou referendos.
No que trata das iniciativas de lei que partem da
sociedade, propomos uma simplificação, com coletas de assinaturas
via internet e um rito próprio de tramitação, no Congresso. Estas
propostas precisam ter prioridade de tramitação, ao invés de cair
na vala comum do processo legislativo, como ocorre hoje.
Infelizmente, não podemos, por enquanto, reduzir o número de
iniciativas necessárias para propor leis por iniciativa popular. São
aproximada 1,5 milhão, mas é algo estabelecido pela Constituição.
O segundo eixo de mudanças estabelecidas no projeto
refere-se à democracia representativa. Queremos proibir as empresas
de financiar partidos ou candidatos, por sabermos que este é um
mecanismo óbvio de corrupção. Em vez disso, propomos um sistema
misto, no qual os partidos seriam financiados pelo Estado e por
doações de pessoas físicas, com limites máximos.
Esta questão é central, porque não podemos pensar
em campanhas caríssimas como as atuais, que tornam imensa a força
do poder econômico. Segundo nossa proposta, haverá teto máximo
para contribuição dos cidadãos às campanhas e, ao mesmo tempo,
limites para gasto global pelos partidos.
O projeto propõe ainda mudanças dos critérios de
partillha, entre os partidos, da verbas provenientes do Estado. Não
podemos manter regras que fortaleçam os já fortes e que tornam
alguns partidos imensamente mais fortes que outros
Outro aspecto é o voto em lista transparente. O voto
do eleitor deve favorecer apenas o partido e candidato escolhido por
ele – diferente do que o corre hoje. Para tanto, as eleições
proporcionais (que elegem deputados federais e estaduais e
vereadores) passarão a ser em dois turnos. No primeiro escolhe-se o
partido; no segundo vota-se nos candidatos de cada lista partidária.
Estas listas devem ter paridade de sexo e critérios de inclusão dos
demais grupos subrepresentados – por exemplo, população negra,
indígena, homoafetiva, juventude etc.
Em que pé está a coleta de assinaturas e quem
procura mobilizar a sociedade em favor do projeto?
O projeto de lei de iniciativa popular foi formulado
por uma Coalizão pela Reforma Politica Democrática e Eleições
Limpas. É uma frente de mais de cem organizações – sociedade
civil e movimentos sociais. A relação
completa pode ser encontrada no site da campanha:
www.reformapolitica.org.br
A iniciativa foi lançada em setembro de 2013. Já
temos mais de 500 mil assinaturas. Estamos convencidos de que o
plebiscito vai multiplicar a mobilização em favor da proposta. É
possível acessar o texto completo do projeto de lei, uma cartilha
explicativa e e formulário para coletar assinaturas no mesmo site.
Se o projeto de iniciativa popular já prevê
tantas mudanças, por que é importante uma Constituinte exclusiva e
soberana sobre o Sistema Político?
A ideia do plebiscito surgiu o ano passado quando
diversos movimentos e organizações se reuniram para discutir o
significado das manifestações de junto. Segundo nossa leitura, elas
revelam, em essencial, o esgotamento do atual sistema politico –
isso é, das formas tradicionais do exercício do poder. Entendemos
que, para mudar isso, é necessário um processo mais amplo de
reformas estruturais. Para tanto, é necessária uma Constituinte
exclusiva e soberana.
O plebiscito de 1º a 7 de setembro não tem valor
legal, é claro – não foi organizado pela sociedade como um todo,
por meio do Estado, mas pelos grupos que reivindicam Reforma
Política. Seu papel é mobilizador e formador. Foi precedido por
centenas de cursos de formação de ativistas. O processo durou
meses, colocou o tema em pauta, preparou, com conhecimento e
argumentos sólidos, milhares de pessoas, que agora darão
continuidade à campanha
Que tipo de questões estariam em debate na
Constituinte sobre Sistema Político?
Além de todas as questões levantadas no projeto de
Iniciativa Popular, o fortalecimento da soberania popular, um nova
sistema de representação e temas diretamente relacionados ao poder.
Por exemplo precisamos mudar determinadas lógicas presentes na sobre
democratização da Justiça, fim do oligopólio que controla as
Comunicações, organização e atribuição dos Poderes do Estado,
democratização da terra, direito à Cidade. Portanto o plebiscito
coloca-se numa perspectiva mais de longo prazo, discutindo questões
centrais que o sistema político atual, por sua própria natureza,
nunca aceita colocar em debate.
As manifestações de junho de 2013 introduziram
um elemento novo no discurso político. Em muitas delas, os que
protestam voltaram-se contra “os políticos”, de forma genérica,
sem especificar a que partidos ou políticos se referem. É como se
as diferenças entre eles estivessem se apagando. Que isso revela
sobre crise da representação no Brasil?
Um elemento preocupante da forma de se fazer política
no Brasil é justamente é esta falta de diferença entre os diversos
partidos e políticos. Isso leva a um descrédito pois se tudo é
igual por que vou me mobilizar, apoiar, etc. Isso leva a uma crise de
representação, pois se “todos são iguais” e a nossa sociedade
é dividida em grupos de interesses, claro que as pessoas não se
sentem representadas.
Em junho, a presidente Dilma chegou a falar tanto
em plebiscito quanto em Reforma Politica. Ambas as propostas foram
sepultadas pelo Congresso Nacional – e ficou tudo por isso mesmo.
Como você avalia a atitude de Dilma então e o fato de ela não ter
insistido na proposta?
A proposta que hoje levantamos sobre a Constituinte
tem diferenças em relação à que foi levantada pela presidenta.
Aquela referia-se, basicamente, ao sistema eleitoral. A nossa é
sobre o sistema politico – ou seja, diz respeito a todas as
relações de poder. Ainda assim, a reação contrária da midia, do
STF e da grande parte do Congresso só demonstra o acerto da nossa
estratégia de consultar o povo sobre a convocação de uma
Constituinte exclusiva e soberana do sistema politico.
Depois de viver, por uma década, um processo
modesto de redução da pobreza e certa redistribuição de riquezas,
o Brasil parece paralisado politicamente. Há consciência de que
necessitamos de um passo adiante na conquista de direitos – mas que
não avançamos porque isso exigiria questionar privilégios. De que
forma o atual sistema político protege tais privilégios?
O nosso sistema político é ao mesmo tempo reflexo
da desigualdade e elemento estruturante das desigualdades. Em outras
palavras, estão no topo do sistema político os mesmos que estão no
topo da pirâmide social. O modelo de redistribuir sem contrariar
interesses chegou a seu limite. Daqui pra frente não tem mais como
“governar para todos” até por que numa sociedade baseada na
desigualdade como a nossa, quem diz que esta governando para todos
esta mentindo pra alguém.
A campanha pela Reforma Política busca
sensibilizar a sociedade num ano eleitoral, em que as atenções em
geral estão focadas na disputa entre os candidatos. Como abrir
espaço, nesse cenário, para um tema que, em teoria, exige
elaboração política razoavelmente refinada?
O tema da reforma do sistema político exige, sim,
elaboração pois trata de uma questão complexa – e para questões
complexas, não existem respostas simples. Nos últimos tempos, os
processos eleitorais afastam o povo da discussão política. É um
paradoxo, mas nas eleições é onde menos se discute política.
Pensamos que o debate sobre a reforma do sistema político pode
resgatar o sentido amplo de se fazer política, criando novas formas
de se fazer política e com novos sujeitos.
Diversos setores que lutam por um novo sistema
político temem a Constituinte por julgar que vivemos um cenário em
que as ideias mais conservadoras estão avançando? Temem que entrem
em debate, ao contrário, assuntos como a redução da maioridade
penal ou a pena de morte. Como isso pode ser evitado?
Avaliamos que a sociedade brasileira está numa
encruzilhada e precisa tomar uma decisão sobre que caminho quer
seguir. Chegamos ao limite da nossa institucionalidade e precisamos
criar novas institucionalidades que tenham condições de processar
as demandas populares. Acreditamos que se tivermos uma igualdade
maior na disputa politica, principalmente na Constituinte, teremos
condições de sair desta encruzilhada e optar para civilidade e não
pela barbárie. Não podemos ter medo – e sim, ousadia.


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