por Lola Aronovich
Foi vendo o documentário O Riso dos Outros (para o qual tive a honra de
ser entrevistada), de Pedro Arantes, que descobri que Preta Gil é (ou era? Será
que não é mais?) uma muleta no humor brasileiro. Parece que, quando a noite de
um comediante de stand-up não está rendendo e o público não ri, o humorista faz
uma piadinha falando que a Preta Gil é gorda e feia, e o pessoal gargalha.
Tem gente que adora chamar negro de
macaco, mulher de vadia gorda, homossexual de viado, e faz desse tipo de
“humor” uma bandeira contra o politicamente correto. Pra essa gente, a pior
praga que tem neste planeta não é a fome, a violência, o estupro -- é o
politicamente correto.
No ano passado, um desconhecido
comediante britânico, Michael J. Dolan, publicou um artigo chamado “Eu fui um
comediante misógino”. Ele diz que lançou uma gravação independente com seu show
e recebeu duas críticas, uma positiva e outra negativa, esta última declarando
que suas piadas eram misóginas. Quando ele perguntou a uma amiga feminista o
que ela achava, ela confirmou o machismo dos chistes. Após um pouco de
reflexão, ele concordou, e chocou-se como aquilo havia passado batido para ele,
o autor do roteiro. Ele escreve no artigo:
"A verdade é que a misoginia
está em alta no cenário britânico do stand-up atual. Vá a qualquer clube de
comédia e veja o quanto demora até que um dos atos chame uma mulher do público
de vadia em troca de uma risada fácil. Veja quantas piadas giram em torno do
humorista exercendo alguma violência sobre uma garota imaginária, e espante-se
que essas piadas sejam tão bem recebidas. Ou apenas conte as piadas de estupro.
Só haverá algumas, mas quase sempre haverá uma ou duas.
Exceto que não são só uma ou duas. A
defesa usada com frequência é que são só piadas. Não devem ser levadas
literalmente, e nós logicamente não estamos falando sério. Mas você raramente
ouvirá um ato contemporâneo tentar justificar o racismo dessa maneira. [Nota da
autora: Dolan precisa conhecer alguns humoristas brasileiros].
Sabemos que numa cultura racista toda
piada racista contribui para essa cultura, e nenhuma delas é aceitável. Com a
misoginia não é diferente. Na nossa cultura de misoginia, de violência contra
as mulheres, toda piada misógina contribui. [...]
Os comediantes racistas de
antigamente foram deixados pra trás quando o resto do mundo avançou. Alguns se
recusaram a mudar, alguns foram incapazes de perceber o que havia de errado no
que faziam. Uma nova geração de comediantes está prestes a ser deixada pra
trás. Aqueles traficando misoginia, homofobia ou outras variedades de ódio para
bêbados sem discernimento vão logo ficar sem amigos." (minha tradução).
Seria ótimo se a profecia de Dolan se
tornasse realidade. E seria ótimo se muitos dos comediantes que temos no Brasil
fizessem essa autocrítica que ele faz. Assim como podemos, na educação, fazer a
pergunta "Pra que(m) serve o teu conhecimento?", também podemos
perguntar: "Pra que(m) serve a tua piada?" Para ajudar a derrubar preconceitos,
ou para perpetuá-los? Para empoderar grupos historicamente oprimidos, ou para
oprimi-los mais uma vez?
Infelizmente, muitos humoristas
parecem se achar semi-deuses, imunes a críticas, acima do bem e do mal. A cada
nova discussão, esses comediantes costumam bradar “Censura!” Eles reclamam que
há uma “patrulha”, uma “ditadura do politicamente correto” que não permite que
realizem seu trabalho, que, dizem eles, é apenas o de fazer rir. Mas emprego é
o que não falta pra eles.
Existe uma inversão de valores, já
consolidada pelo senso comum. Enquanto vários comediantes são vistos como
modernos e despojados -- apesar das palavras reacionárias que saem de suas
bocas -–, as pessoas que lutam por mudanças na sociedade são consideradas
caretas e atrasadas. O resultado é que hoje politicamente incorreto virou
eufemismo para abertamente preconceituoso.
O humor pode sim ser transgressor.
Mas o que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é
que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram preconceituosos.
Certamente eles já comparavam negros
com macacos, já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia tem em ser
estuprada. Quem ainda adota essas piadas no século 21 não está sendo ousado ou
criativo, só está seguindo uma tradição. Ousadia é querer mudar o mundo,
começando pela forma que falamos. Não há nada de novo ou de rebelde ou de
engraçado em eternizar velhos preconceitos.
Piadas não são neutras. São armas que
podem ferir, destruir, perpetuar preconceitos, e também derrubá-los. O humor é
um discurso como outro qualquer, não está acima da lei. Querer que o humor se
responsabilize pelo que diz não é censura -– é também liberdade de expressão.
Mas muitos humoristas parecem querer manter, a qualquer custo, a liberdade de opressão.


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