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domingo, 11 de maio de 2014

Tapete vermelho para o Ditador.




  • “A história, penso eu, irá dizer que, no interesse a longo prazo do Brasil, a Revolução de 1964 foi benéfica e até necessária. A outra alternativa seria certamente um desastre”. As palavras são de Sir John Russell, embaixador britânico no Brasil, em um balanço sobre o país escrito em 1969. Mas àquela altura, cinco anos após o golpe “necessário”, o diplomata já demonstrava suas ressalvas quanto aos rumos do regime: “começo a ter agora uma sensação desagradável de que o expurgo foi longe demais e continua muito longo”.
    Depoimentos como esse, produzidos por diplomatas britânicos durante os primeiros 15 anos da ditadura brasileira (1964-1979), foram classificados como confidenciais e secretos – e por isso ficaram inacessíveis por um período mínimo de 30 anos, desde a data de sua criação. Hoje estão disponíveis para consulta pública. São relatórios, telegramas e cartas armazenados em 270 pastas no The National Archives,arquivo oficial do governo do Reino Unido, em Londres.
    As correspondências vão além da narração dos fatos: apresentam interpretações, análises e previsões, sempre em sintonia com os interesses diplomáticos,comerciais e econômicos britânicos – desde aumentar as exportações e assinar acordos de cooperação que pudessem gerar empregos no Reino Unido até afastar a possibilidade de o Brasil se associar ao movimento comunista internacional. A Embaixada britânica tinha a missão de monitorar, traduzir e reportar os acontecimentos mais marcantes do país. Para isso, seus funcionários liam as notícias publicadas na imprensa brasileira e se utilizavam da influência diplomática para obter informações privilegiadas de fontes seguras, dentro e fora do governo.
    Ordenados cronologicamente, os documentos diplomáticos formam uma retrospectiva daquele período sob a ótica britânica. Três dias depois do golpe, o embaixador Sir Leslie Fry enviou a Londres um despacho no qual destaca a satisfação de grande parte da população brasileira com a deposição do presidente João Goulart. “Estou certo de que a maioria dos brasileiros está aliviada com o desaparecimento do Sr. Goulart e de seu séquito, composto apenas de extremistas e oportunistas”. Para o embaixador, o novo regime sabia exatamente o que queria combater ao assumir o poder: comunismo, marxismo, manifestações de extrema-esquerda, tentativas de subverter as Forças Armadas, perturbações à lei e à ordem, corrupção e má administração.
    No relatório anual de 1966, o embaixador Sir John Russell destacou a tenacidade do general Castello Branco, que se manteve resoluto em sua tarefa de substituir a “confusão pré-revolucionária” por ordem e estabilidade. Em março do ano seguinte, Sir Russell teceu novos comentários sobre o ex-presidente: “O marechal Castello Branco trouxe para a sua administração três características nada brasileiras: ele foi incorruptível, imperturbável e inflexível”. Entretanto, para o embaixador, o seu governo foi marcado por um “progressivo afastamento da democracia”. O Ato Institucional n° 5, promulgado em 1968 no governo de Emílio Garrastazu Médici, foi descrito por ele como uma “desagradável chicotada política”. Generais puritanos reassumiam abertamente o controle do país e reafirmavam sua determinação de restaurar a ordem à sua própria imagem, reprimir a subversão e a corrupção e dar novo impulso ao desenvolvimento econômico e social. “O Congresso está indefinidamente em recesso. A imprensa está amordaçada. Politicamente, o Brasil voltou para 1964”, registrou.
    Como se pode imaginar, a notícia do sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em 1969, colocou os diplomatas em estado de alerta. “Isso marcou o clímax de uma série de atividades terroristas urbanas, como assaltos a banco, roubos de armas e ataques a estações de rádio e televisão por pequenos grupos de homens e mulheres determinados, frequentemente muito jovens, que parecem não ter princípios ideológicos muito definidos, mas são inspirados pelo mito – em vez das realizações – de Che Guevara”, relatou o embaixador Sir David Hunt. Novos sequestros de diplomatas viriam, sempre em troca de prisioneiros, e então os britânicos passaram a criticar as forças de repressão: “A reação da polícia brasileira aos sequestros foi violenta e tem prejudicado a reputação internacional do Brasil. A prisão por atacado e a detenção de suspeitos – e, sobretudo, os métodos grosseiros aos quais as autoridades de segurança, que são técnica e profissionalmente deficientes, têm recorrido nos interrogatórios – provocaram críticas generalizadas no exterior”. O embaixador informou ainda que “a polícia e o Exército mataram vários dos mais importantes líderes terroristas”.
    Relatos sobre essas mortes estão arquivados numa pasta classificada como secreta e intitulada “Atividades de organizações de guerrilha no Brasil”. A execução, em setembro de 1971, de Carlos Lamarca, líder da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi registrada como um “trunfo extraordinário” para as autoridades de segurança. Outra pasta catalogada como secreta reúne documentos que expressam a preocupação internacional com violações de direitos humanos no país. Incluindo dezenas de cartas enviadas, no início de 1972, por membros de diferentes grupos da Anistia Internacional na Inglaterra e Escócia para o Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, em protesto contra maus-tratos e tortura de presos políticos no Brasil.
    A Embaixada no Brasil era hábil em trocar opiniões reservadas com diplomatas de outros países, como Estados Unidos, Suíça e Canadá.Ao fazer uma avaliação sobre as denúncias de tortura, o embaixador Sir David Hunt relatou, em 1972, a dificuldade de obter provas confiáveis. “Meus colegas diplomatas estão no mesmo barco”, observou. Segundo ele, o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, após cinco anos no país, deixou de acreditar na tortura como prática frequente. “Os embaixadores americano e canadense adotam a mesma linha (...) Eles acham que têm conhecimento de casos, mas não consideram as evidências conclusivas”, comenta. Dois anos depois, uma nota interna e confidencial do governo britânico revê a questão: “A posição pública do governo brasileiro sobre tortura é que ela não está autorizada nem aprovada. No entanto, não há dúvida de que a brutalidade e a tortura ocorrem de fato, como tão frequentemente acontece em regimes autoritários com uma poderosa polícia”.
    Um dos assuntos de maior destaque no período foi a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. O oficial de informação do consulado britânico em São Paulo, John Guy, confidenciou o conteúdo de uma conversa reservada que tivera com o cônsul-geral da França, Michel de Camaret: “O cônsul-geral francês me contou que ele foi informado que Herzog havia sido torturado por seis a sete horas antes de morrer. Sua fonte para essa informação é um cidadão francês que está detido há cerca de 30 dias”, revelou.
    O relatório de 1979 ficou a cargo do embaixador George Hall, que registrou mudanças significativas no país, em especial a Lei da Anistia. Havia ainda muita dúvida naquele momento sobre até onde iria o processo de abertura política. Para os britânicos, o Brasil precisaria de “tolerância e compreensão de seus amigos, à medida que avança em seu esperançoso caminho”.
    As autoridades inglesas acompanhavam essas notícias principalmente com interesses comerciais. O objetivo principal era aumentar a oferta de produtos e serviços para o Brasil, em um período de crise na economia britânica. Essa posição não estava livre de críticas. Políticos e cidadãos lamentavam os esforços em estreitar laços com o Brasil por causa das acusações de violação de direitos humanos. A diplomacia britânica, no entanto, mantinha a posição de que as Nações Unidas era o melhor foro para discutir o problema, e de que o governo do Reino Unido não tinha o direito de intervir em casos individuais, a não ser que cidadãos britânicos estivessem envolvidos.
    As denúncias de violações dos direitos humanos não foram fortes o suficiente para fazer com que os britânicos desistissem de buscar contratos volumosos para o fornecimento de equipamentos – como de fato conseguiram junto aos setores siderúrgico, ferroviário e energético do Brasil.

    Geraldo Cantarinoé jornalista e autor de A ditadura que o inglês viu (Mauad X, 2014).

    Tapete vermelho para o ditador
    Foi a convite da rainha Elizabeth que o presidente Ernesto Geisel esteve na Inglaterra, entre os dias 4 e 7 de maio de 1976. Era a primeira vez que um chefe de Estado do Brasil visitava oficialmente o Reino Unido. Geisel não apenas ficou hospedado no Palácio de Buckingham, mas foi o primeiro convidado estrangeiro a usar a residência oficial de Sua Majestade como local de reuniões e negociações. A inusitada sucessão de encontros de ministros, banqueiros e industriais no palácio real foi justificada como necessária para oferecer maior comodidade ao presidente.
    A visita gerou centenas de correspondências diplomáticas e tornou-se o episódio com maior volume de documentos do período da ditadura no arquivo nacional britânico. A iniciativa do convite partiu do governo trabalhista do primeiro-ministro Harold Wilson, que recebeu fortes críticas no Parlamento e em seu partido – que aprovou uma moção lamentando o fato de o “chefe de um dos mais repressivos regimes da América Latina” ser bem-vindo ao país. Autoridades brasileiras chegaram a alertar os britânicos sobre uma suposta ameaça de assassinato do presidente Geisel. O resultado da visita, no entanto, não poderia ter sido mais satisfatório para os ingleses. “Cinco substanciais acordos comerciais foram assinados ou rubricados”, celebrou o embaixador Derek Dodson.
    Sites
    The National Archives, arquivo oficial do governo do Reino Unido
    www.nationalarchives.gov.uk
    Hemeroteca Digital Brasileira, para consulta ao acervo do Jornal do Brasil
    http://hemerotecadigital.bn.br

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