Quando o ser se asfixia, as lembranças boas e a autonomia da memória o levam a tratar com despeito uma realidade que não reconhece como sendo sua. Não importa quanto tempo aquela realidade tenha sobrevivido e quanto dano tenha causado.
Neste momento, a família continua sendo a célula de maior coesão entre todos os tecidos sociais, mas ao mesmo tempo também a molécula mais egoísta entre aqueles coletivos de natureza afetiva (etnia, religião, nação) que competem pela felicidade de seus membros, evitando o olhar além de suas paredes e corações. Enquanto isso, o amor que tudo gera e multiplica, se nega, após uma lua-de-mel, a seguir colaborando e empreende vôo à medida que a rotina cotidiana corrompe os amantes e o lar se transforma em empresa reprodutiva.
O mundo se transformou em um Grande Bazar onde religiões e ideologias, filosofias e discursos, imagens e valores, desejos e projetos são vendidos, mas felizmente para nós e lamentavelmente para seus negociantes, cada vez a vontade e o dinheiro para comprar tanta mentira diminuem mais. Deixemos então que seus artesãos e publicistas consumam sua própria mercadoria e continuem provando o sabor de seu fracasso. A fome e a peste, a guerra e a morte, multiplicam apocalipticamente seus cadáveres e a competição dos defuntos acelera o crescimento e democratiza a carniça. Felicidades! Aí nós permitimos de fato que o vírus da degeneração ganhe o jogo e povoe os campos e jardins, aqueles mesmos que hoje transformamos em túmulos e desertos. A religião e a moral, a política e a ciência, a indústria e o mercado nasceram como espaços e artefatos humanos para gerar o bem comum em benefício de um bem individual generalizado. Com o passar do tempo, a civilização competitiva e patriarcal os transformou em administradores privados da força e da riqueza, desta vez em benefício do poder e do capital.
O crescimento incessante aborta o bem estar e o consumo tardio devora a reprodução da vida. Para que o PIB cresça, o crescimento sustentado da produção e do lucro tira o pão da boca de cada criatura recém-nascida. A crise recorrente de legitimidade, governabilidade e desequilíbrio financeiro, os problemas gerados pelo crescimento e pela concentração excludentes, mas sobretudo a crise de identidade que aflige as velhas gerações desgastam dia após dia as reservas materiais e ideológicas da ordem herdada e asfixiam sua própria reprodução.
Tanta utopia ensaiada e tanta coragem esbanjada não merecem ser lembradas se o Ter, o Tomar e o Poder continuam sendo a bússola de nossos instintos e a ética dos civilizados. Tanta paz e tanta tranqüilidade não merecem ser reproduzidas se as vítimas perderam o direito de lutar pela erradicação de seus carrascos
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