NOSSA ARMA É A INFORMAÇÃO
Entrevista de Gas-PA, fundador do Coletivo LUTARMADA (RJ) - cedida a Cinthia Saito.
Em que sentido você acha que a existência da cultura hip hop contribui para melhorar o mundo?
Depende. O hip hop que o grande público está tendo acesso hoje não contribui com nada. Pelo contrário, ele presta um desserviço à revolução, é machista, ostensivo, reprodutor dos vícios do mundo "capetalista", do jeito que o Bush - o pai desse fundamentalista protestante que hoje apavora o planeta - quis. Pouca gente sabe, mas foi a partir de um encontro daquele déspota com o grupo N.W.A. que o hip hop tomou essa forma que hoje ganha o mundo. Aliás, esse hip hop já existia, mas foi a partir desse encontro que a indústria fonográfica passou a investir maciçamente nessa bosta. Dizem que é coincidência. Eu tive o privilégio de iniciar a minha militância no movimento quando o que nos chegava era majoritariamente revolucionário, em 1991, já na beira da transição. Felizmente - no Brasil, principalmente - o hip hop tem forças que resistem à cooptação. Quando os gringos vêm aqui, ficam "de cara" com a gente e dizem sem a menor cerimônia que "o hip hop brasileiro é o melhor do mundo!" (risos). É assim que eles falam. Vai vendo! E quando eles dizem isso, não é legal duvidar. Numa palestra com militantes de movimentos sociais do México, Bolívia e Colômbia, contei-lhes que aqui nosso nível de organização atingiu um ponto em que conseguimos "arrombar" um canal de negociação com o Governo Federal pra discutir e propor políticas públicas e lhes perguntei se lá em suas respectivas terras eles podiam contar com o hip hop, como aqui no Brasil as organizações mais sérias da esquerda podem contar com a gente. A colombiana disse que não conhecia o movimento por lá, o mexicano e o boliviano falaram apenas sobre as políticas pra a juventude. Nem entenderam aquela palavra: hip-hop. É claro que eu sei que lá tem. Mas se fosse expressivo politicamente, eles saberiam dizer, imagino. Tanto é, que estamos até exportando militantes. Uma companheira nossa, a Mara, de SP, até se embrenhou na luta pela nacionalização do petróleo lá na Bolívia. Então, nesse sentido, acho que a gente tem muito a contribuir. Mesmo os que não atuam diretamente, mas através de suas artes, propagam uma mensagem positiva e mobilizadora e já estão contribuindo. Foi assim comigo. Eu era um merda. Não servia nem pra ser gente. Aí escutei uns raps que foram fundamentais para hoje eu ser o que sou. Como diz uma música minha, "se acha que hoje eu não estou bem, antes eu era pior ainda".
Quais os propósitos e objetivos de quem faz parte da cultura hip hop? Ou seja, o que vocês defendem, em que acreditam?
Pô, essa pergunta é foda! Sabe por que, lindinha? São várias cabeças pensando coisas bem diferentes. Tem gente que tem como objetivo descer do palco e arrumar uma "preta pra comer", como eu já ouvi certa vez. Tem gente que só quer divertir. Outros, só dindim. E por aí vai. O lema do LUTARMADA é "mobilizar entretendo, entreter mobilizando". O hip hop está a anos luz de ser homogêneo. Então é bom observar o que fazem determinadas correntes. Hoje, existem 5 organizações nacionais de hip hop e o LUTARMADA é filiada a uma delas. E o nosso objetivo é a revolução, o rompimento com essa estrutura vigente, uma sociedade sem classes. É clichê? Pode ser, mas se nossa realidade também é, qual o problema?
O movimento hip hop é como um movimento social cantado?
Cantado, graffitado, dançado e "arranhado".
Além da música, que outros meios vocês têm para expor o pensamento?
Nós incentivamos a leitura nas nossas vizinhanças, realizamos debates, exibimos filmes que geram debates e reflexões sobre a nossa realidade, mas sempre agregado ao entretenimento. Vivemos numa sociedade que depende muito do entretenimento. No livro "Cidade Partida", Zuenir Ventura conta que foi num baile funk da Baixada Fluminense, naquela era em que ele era mais violento. Zuenir observa que naqueles chutes todos, em todos aqueles socos e cotoveladas, dedadas nos olhos etc, ele não conseguia sentir um resquício de ódio, rancor, ressentimento, que toda aquela violência era puro lazer. E eu não discordo. Eu tive muitos amigos que freqüentavam esses bailes. Então a gente conclui que no Rio o entretenimento é algo tão incutido que esse povo se diverte até tomando porrada. Ah, nós ainda não temos graffiteiros, mas acho muito eficaz. A mensagem tá la e você vê todos os dias, não paga entrada e nem tem que comprar.
A participação de jovens nesse movimento ajuda a reduzir a criminalidade?
Acredito que a baixa auto-estima e a "invisibilidade" também levam ao crime. Acredito, sim, que poderíamos viver num Brasil um pouco mais violento se não fosse o envolvimento da juventude com o hip hop.
Como a grande mídia normalmente expõe esses tipos de atividades culturais?
Depende. A exposição pode ser uma, se for pra alguma atividade da Cufa (Central Única das Favelas), que já está comprometida com a máquina, e outra para um LUTARMADA, que está comprometido só com a revolução e é crítico com ela mesmo sob sua estrutura. Nós nunca diríamos que o "Criança Esperança" é um projeto fidedígno. Por exemplo: uma equipe veio entrevistar-nos aqui no morro, para um programa que passa tanto no Canal Futura quanto na Globo. Antes, perguntei quanto tempo o programa tinha de duração e que horas iria ao ar. A resposta foi: meia hora às 6h30. Foi só ele me perguntar o porquê da pessoa segurando um livro na nossa logomarca que eu ressaltei a importância da socialização de informação relevante por nossa parte, já que os grandes meios de comunicação dedicam todas as tardes de sábados e domingos a espetáculos de alienação, e quando tem que passar algo construtivo, instrutivo, tem que ser espremido em 30 minutos, às seis e meia da matina. Eles adoram mostrar aqueles artistas algemados ao 3º setor, que não tem senso crítico, que ao invés de cobrar dos governantes que eles cumpram o seu papel, assumem no lugar deles a lógica neoliberal. Nem todas as ONGs cabem nesse pacote, só 99%. Já me chamaram pra dar palestra sobre hip hop num colégio municipal. Eu sempre faço isso com o maior tesão, só que a dona lá queria agregar o meu trabalho ao projeto "Amigos da Escola". Eu disse pra ela que em 1992 esse projetinho ainda nem existia e eu já palestrava em colégios, e que não tinha porque os Marinho se apropriarem da minha correria nessa altura do campeonato. E que com os impostos que eu pago, já sou amigo da escola, da Comlurbe, do hospital, da iluminação pública e até da polícia... Ela que não é nossa amiga!
Existe um manifesto contra a ocupação das tropas brasileiras no Haiti. Por que você acha que o Brasil tem que retirar as tropas do Haiti?
Porque ninguém tem o direito de interferir nos rumos de povo nenhum. Eu chamo essa ocupação de "Operação brother san, versão tupiniquim".
Como a grande mídia em geral está tratando desse assunto?
Com a maior discrição possível. Se der muito cartaz, parte desse povo que condenou a invasão do Iraque e está indiferente à permanência dos milicos brasileiros no Haiti, vai começar a questionar.
Como a cultura hip hop vê essa ocupação? E por que esse grande engajamento da cultura hip hop em relação a essa ocupação?
É triste dizer, mas não posso omitir. Existe muito oportunismo no hip hop quanto a essa questão. O governo nos chamou pra compor com eles a campanha "Pense no Haiti, zele pelo Haiti", que consiste, entre outras coisas, em shows, palestras e atividades que visam arrecadar material escolar pra mandar pra "menorzada" haitiana. Em primeiro lugar, o hip hop, enquanto movimento de resistência, tem por obrigação ser contra qualquer ação que sufoque a luta de um povo oprimido. Portanto, tinha que se pronunciar contra a invasão do primeiro país a libertar os escravos negros no mundo. Aliás, uma nação que nasceu de uma revolução escrava. E depois, que criança quer material escolar de um país que manda militares pra matar seus familiares? No Iraque, depois das bombas, os aviões estadunidenses jogavam pacotes de mantimentos com uma mensagem mais ou menos assim: "estamos reestabelecendo a democracia". O que o governo quer é que sejamos o seu pacote de mantimentos pra ele poder dizer que "estamos reestabelecendo a cultura". E quando eu digo oportunismo, você pode entender como medinho de perder alguns projetos no MinC [Ministério da Cultura], perder "prestígio" no governo, e ainda perder uma possível disputa que possa haver entre essas organizações. Você pode imaginar a projeção - até internacional - que isso pode trazer pros grupos participantes. Só que Geraldo Vandré se projetou nacionalmente com a música "Pra não dizer que não falei de flores". Tiririca conseguiu se projetar com a "Florentina". Aí, vai de cada um. Não sei de onde Lamarca tirou aquilo, mas aquela frase guia meus passos: "Ousar lutar. Ousar vencer".
Por que o Brasil está lá?
Pra garantir um espaço permanente no Conselho de Segurança da ONU. É triste ver o Lula vender todo um povo em nome de um Conselho que não serve pra porra nenhuma, já que não foi capaz de impedir a invasão do Iraque pelos EUA. E o pior é que não vai adiantar nada. As cadeiras ficarão com a Índia e com o Japão. Pode até ser que eu me engane, mas dá uma olhadinha no mapa. A primeira está ao leste e o segundo ao oeste da China. Pros EUA, que estão ameaçados de perder o posto de maior potência econômica e bélica do mundo para China em 20 anos, é ou não é uma distribuição estratégica? E dizem por aí que a permanência das tropas brasileiras lá é um estágio pra atuar na tropa de infantaria leve, aquela de Campinas, montada pra agir em "distúrbios sociais".
O que a retirada das tropas de lá representa para você, para o povo Haitiano, para a cultura hip hop, para a cultura negra em geral e para o mundo? E a permanência?
É claro que para o povo haitiano seria um alívio. Agora, pras organizações de hip hop que já se comprometeram com essa sacanagem toda, já tá geral marcado. Pra cultura negra, como eu disse, aquele país nasceu de uma rebelião de escravos. Ainda em 1816, o presidente Alexandre Pétion emprestou armas para Simon Bolívar, quando a chapa esquentou, desde que ele se comprometesse a abolir a escravidão quando a América estivesse liberta. Imagina quantos cabelos não perderam os senhores de escravos por todas as Américas nessa ocasião! É uma forte referência. Pro mundo, nem sei se o mundo olha pro Haiti. Pra mim, minha consciência está tranqüilinha.
Você participa de um movimento chamado LUTARMADA, o que pressupõe o uso de armas. Qual a sua opinião sobre a proibição da venda de armas?
Primeiro, é bom deixar claro que a nossa arma é a informação, veja por nossa logomarca. A informação que não chega nas favelas por interesse da classe dominante e negligência da esquerda. E se ela conseguir se articular, ao meu ver, esse é o momento de se puxar a discussão dos referendos para as decisões mais importantes, que dizem respeito ao povo. Na nossa Constituição, logo lá no comecinho, diz que todo poder emana do povo. Mas enquanto não conquistamos o direito a esses referendos, a verdade é que o povo não exerce poder nenhum. Bem, o LUTARMADA é uma organização onde as diferenças são respeitadas. Pode ser a única organização de hip hop que abriga evangélicos e ateus. Então, eu prefiro não falar em nome do grupo. Eu entendo que a burguesia tem vários motivos pra apoiar essa campanha pelo sim. Um deles é que, mesmo que ela não porte armas de fogo, ela tem quem porte pra ela. Tanto o crescente ramo da segurança privada, como a "segurança pública", que é o seu braço armado. A nossa polícia existe para defender o patrimônio, e não a vida. A delegacia que registra o maior número de homicídio é a de Belford Roxo, mas é na zona sul da capital que se concentra todo o aparato tecnológico a serviço da polícia. Foi na Barra, a pretexto do crescimento de roubos e furtos de carros, que ficou sobrevoando aquele dirigível. Então, a burguesia não precisa portar, pode muito bem apoiar o desarmamento. Depois, é a própria burguesia que faz chegar até as favelas e bairros da periferia todo esse armamento. Quem lucra com isso é ela mesma. Só que esse comércio acontece clandestinamente, e com a proibição, clandestino vai continuar. A única diferença é que, sem concorrência com o mercado formal, o preço vai lá pra estratosfera. É ou não é um bom motivo pra ela apoiar essa campanha? Quem tiver tendência a se armar, não vai deixar de fazê-lo com a proibição. Só vai fazê-lo por um preço mais elevado.
www.fazendomedia.com

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